A Divinização do Mal e a Demonização do Bem – 1

A. O Bem e  o Mal na Esfera Moral

Filósofos, hoje em dia, raramente são moralistas, isto é, defendem ou criticam valores morais, enquanto tais. Mais frequentemente, estão interessados na análise do discurso moral, em descobrir por que, ou com base em que, consideramos alguns comportamentos (ou até mesmo alguns pensamentos) moralmente errados e outros moralmente certos (e outros como nem uma coisa nem outra, ou, o que seria a mesma coisa, como moralmente irrelevantes).

Falar com os outros com a boca cheia de comida, ou comer usando competentemente vários talheres são questões geralmente consideradas moralmente irrelevantes – mesmo que socialmente condenáveis ou louváveis em determinados contextos. Trata-se, neste caso, mais de costume e etiqueta do que de moralidade.

Causar dor física em outra pessoa, sem motivação relevante que justifique o fato, é um comportamento geralmente considerado moralmente errado e moralmente condenável. O farmacêutico que dá uma injeção em uma criança lhe causa dor física, mas ele o faz por motivação relevante que justifica seu ato – razão pela qual não o condenamos moralmente. A mesma coisa se aplica ao cirurgião que corta a barriga ou abre o peito ou mesmo o crânio de um paciente. (Em relação a operações cesareanas sem justificativa fundamentada na conservação da saúde ou mesmo preservação da vida da mulher, mas decorrente apenas de conveniência ou preferência, seja da mulher, seja do cirurgião, a questão pode ser diferente — digo “pode ser”).

A situação é um pouco mais confusa no caso de causar dor emocional a outra pessoa, em especial através da linguagem. Chamar alguém de burro ou incompetente, ou mesmo de gordo ou feio, machuca – mesmo que o machucado não deixe evidências fisicamente visíveis. Contar piadas étnicas (sobre portugueses, baianos, gaúchos, campineiros, etc.) é algo que frequentemente machuca os representantes dessas etnias ou regiões. Ferir a sensibilidade alheia através de nossa linguagem, machucar os outros pela nossa fala, é isso moralmente errado? A dor física e a dor emocional se equivalem no contexto moral?

Fazer o bem, ou ajudar a quem está em necessidade, ou porque foi vítima de um assalto ou acidente, ou porque caiu doente, ou porque perdeu o emprego, ou porque, mesmo sem ter perdido o emprego, ganha muito pouco, é geralmente considerado moralmente certo – e portanto, a menos que haja boas razões em contrário, é comportamento considerado moralmente obrigatório.

Mas fazer bem a mim mesmo, à minha saúde, não bebendo bebida alcoólica, não fumando, não tomando drogas, não comendo alimentos não saudáveis, fazendo exercícios, etc. – é esse tipo de comportamento moralmente obrigatório? Não fazer essas coisas é moralmente censurável, por mim em relação aos outros e pelos outros em relação a mim?

As situações mencionadas nos último e no (sic) antepenúltimo parágrafo parecem mais difíceis de tratar moralmente do que as situações mencionadas nos parágrafos que antecedem a eles porque no último e no antepenúltimo parágrafo entra em questão a liberdade: a minha liberdade de expressão, no antepenúltimo parágrafo, e a minha liberdade de viver como me apraz, no último. A liberdade é considerada, por muita gente, um bem moral em si mesma – na verdade, sem ela (que faz parte do conceito de “livre arbítrio”) parece não ser possível falar em moralidade. Para a maior parte das pessoas, uma moralidade compulsória, em que sou fisicamente (ou, talvez, emocionalmente) impedido ou restringido de fazer o mal e incentivado ou compelido a fazer o bem, parece ser uma contradição de termos. A moralidade parece pressupor a nossa liberdade, a nossa possibilidade de escolher e decidir (mesmo que errado).

Faz tempo que reflito sobre essas coisas – apenas a minha vida adulta inteira, isto é, mais de cinquenta anos. Há dias venho escrevendo um artigo mais longo sobre o assunto. Mas hoje resolvi escrever o resumo contido neste parágrafo como preâmbulo para uma outra discussão: a do “Marketing do Mal” e do “Marketing do Bem“.

B. O Bem e o Mal “Dados” e Absolutos

Tradicionalmente, a tendência foi considerar o bem e o mal, na esfera moral, como coisas dadas. Alguns comportamentos (ou mesmo pensamentos) são moralmente certos e outros, moralmente errados, bons ou maus, de forma final e absoluta.

No Judaísmo, por exemplo, o bem e o mal são definidos, na esfera moral, pelo que Deus determina que deve ser feito e deve ser evitado. Honrar pai e mãe é um bem moral,  guardar o Sábado é um bem moral. Por isso, é obrigatório fazer essas duas coisas. Por outro lado, matar, roubar, mentir (dar falso testemunho), cometer adultério são males morais. Por isso, é proibido fazer (isto é, obrigatório não fazer) essas coisas. Interessante que cobiçar coisas alheias também é um mal moral, embora cobiçar não seja uma ação física que se realize no espaço e seja visível a todos, mas é uma “ação mental”, por assim dizer, um pensamento misturado com sentimento, algo como desejar para si aquilo que é do outro.

Fica a impressão de que, para o Judaísmo Bíblico, essas ações são moralmente certas ou moralmente erradas exatamente por serem ordenadas ou proibidas por Deus. Parece que, para o judeu do tempo bíblico, alguém age de forma moralmente errada (apenas) porque Deus proibiu essa forma de ação – em outras palavras, estas retiradas da Filosofia Medieval: mala quia prohibita – algo é considerado moralmente errado porque foi proibido (por autoridade que tem poder para fazer valer sua vontade, no caso Deus). Mas por que Deus proibiu essas coisas e não outras? A resposta apelava pela liberdade e soberania de Deus — pelo poder e pela autoridade de Deus, por ser o criador do universo e, dentro dele, do homem. Deus proibiu porque proibiu, proibiu porque assim houve por bem, proibiu, enfim, porque quis.

Boa parte dos filósofos gregos e romanos, e um número significativo de filósofos do fim da Idade Média, se recusaram a aceitar essa doutrina. Para eles, a tese filosófica que deve ser aceita é a de que prohibita quia mala – algo é proibido (até mesmo por Deus) porque é errado. Isto significa que existe uma lei moral que é inerente na natureza das coisas (jus naturalis), à qual até mesmo Deus está sujeito, que determina o que é certo e o que é errado do ponto de vista moral, e é por essa lei que nós (e até mesmo Deus) devemos orientar nossas ações. Temos acesso à lei natural através de nossa razão – o nosso mais confiável instrumento de cognição (inclusive na área moral).

O importante é que, em ambas as doutrinas, o bem e o mal morais são finais e absolutos, não são relativos ao que sentimos, ou ao que queremos alcançar ou produzir, ou ao que de fato produzimos. No primeiro caso, o ser humano fica esperando que Deus decida, mas uma vez que ele o faça, a coisa está decidida, irrespectivamente de contextos e circunstâncias. No segundo caso, o ser humano precisa tomar a iniciativa, refletir, investigar e buscar conhecer, através de sua razão, o que é certo e o que é errado. Mas uma vez que o faça, e que sua busca seja bem sucedida, a coisa também está decidida para agora e para sempre – na verdade, até para o passado.

Em ambos os casos, não se tem dúvida de que algumas das nossas ações são moralmente corretas e outras, moralmente erradas; as primeiras são moralmente obrigatórias, as outras, moralmente proibidas. E isso é descoberto, ou pesquisando aquilo que se acredita ser a palavra revelada de Deus, ou utilizando nossa razão, refletindo, argumentando consigo mesmo, por assim dizer.

O certo e o errado morais são, nesses dois casos, objetivos e absolutos, não variando conforme contextos e circunstâncias. Eles nos são “dados”, ou pela revelação divina ou pela razão humana.

Nesses dois casos, o que é moralmente certo não deixa de ser moralmente certo com a passagem do tempo ou com mudança do espaço (literal ou figurado, mudando-se de uma cultura para outra) – e muito menos se torna moralmente errado por causa disso. E o mesmo se aplica, mutatis mutandis, ao que é moralmente errado.

C. O Bem e o Mal “Construídos” e Relativos

Sempre houve, em especial a partir do Renascimento do Século 15, mas mais especialmente ainda a partir do Iluminismo do Século 18, quem rejeitasse essa visão absolutista da moralidade (embora Kant, no apagar das Luzes do Iluminismo, talvez seja o maior absolutista racionalista que já existiu – a propósito, quem apagou as luzes do Iluminismo foi aquele neurótico chamado Jean-Jacques, normalmente conhecido como Rousseau).

Durante os Séculos 17 e 18, filósofos como Shaftesbury, Hutcheson e Hume procuraram construir uma nova base para a moralidade, abandonando tanto a revelação divina como a razão humana. Essa nova base foi o sentimento, que é dirigido por um senso moral (uma consciência?) enraizado em nossa natureza. Embora todos eles acreditassem que existe algo que poderia ser chamado de natureza humana, e que essa natureza humana seja razoavelmente uniforme, fato que redundaria em sentimentos humanos razoavelmente uniformes, naquilo que é essencial, nos diversos tempos e locais, eles três eram suficientemente sofisticados para reconhecer que a distinção entre aquilo que é essencial e aquilo que é acessório, entre sentimentos morais (essenciais) e sentimentos calcados em meros gostos e preferências oriundos de criação e costumes e não da natureza humana (acessórios), é problemática e difícil de defender na prática.

O salto sobre esses “sentimentos naturais” que fluem de uma natureza humana razoavelmente uniforme para a tese de que todos os sentimentos são fruto do ambiente, da criação, dos costumes, e, portanto, relativos aos diversos tempos e locais em que surgem, não custou a acontecer. Na verdade, antes de Hume, Locke já defendera a tese de que somos, ao nascer, tabulae rasae, folhas de papel em branco em que o ambiente escreve o que acha mais conveniente.

Assim, valores morais, que, antes, eram vistos como “dados”, por Deus, ou pela razão, ou pela natureza humana, passaram a ser vistos como “construídos” pela sociedade, ou seja, por nós mesmos. Sendo construção nossa, são relativos aos tempos e locais em que vivemos, aos nossos interesses e desejos, etc. – e nada têm de absolutos, podendo ser alterados ad libitum – à vontade. São frutos de nossos gostos e preferências – e gostos não se discutem (de gustibus non disputandum est).

O resultado dessa mudança pode se ver em Bertrand Russell, considerado por muitos o Hume do Século 20, que, uma vez, no final da vida, quando indagado (como o grande moralista que supostamente era) o que realmente havia de errado naquilo que Hitler fez na Europa, disse que, por mais que tentasse encontrar algo de objetivamente errado nas ações de Hitler, só conseguiu concluir que achava que as ações de Hitler eram por ele consideradas moralmente erradas simplesmente porque ele, Russell, não gostava daquilo que Hitler fizera.

Se você acha que Russell é o “fim da picada”, você não viu nada ainda. Espere pela seção seguinte. Os gostos de Russell, pelo menos a maioria dos que ele revelava publicamente, não eram muito distantes dos gostos da maioria das pessoas do Ocidente – apesar de Russell ser ateu, defensor do amor livre, etc. e de ter combatido fortemente a Igreja Cristã (e sido combatido fortemente por ela).

D. A Inversão do Bem e do Mal

Estou lendo agora (entre dois outros) um livro (The Marketing of Evil, de David Kupelian) que discute como, em 50 anos (de meados dos anos 60 para cá), várias ações que eram tidas como vícios nossa sociedade (consideradas moralmente erradas ou pecaminosas, conforme fosse o avaliante secular ou religioso), se tornaram (ou, pelo menos, assim parece) virtudes (ou, no mínimo, deixaram de ser vistas como moralmente erradas ou pecaminosas), a saber (numa lista longe de ser exaustiva):

  • manter relações sexuais ou conviver maritalmente com pessoas adultas do mesmo sexo
  • manter relações sexuais (ainda que heterossexuais) antes e mesmo fora do casamento, até mesmo em idade bem precoce (em plena adolescência)
  • engravidar e engravidar-se fora do casamento e assumir o cuidado dos filhos isoladamente, sem a ajuda de um parceiro
  • divorciar-se sem necessidade de fornecer “causa legítima” além do “desamor” (“divorce on demand”), e fazer isso em série
  • viver junto em “concubinato” ou “companheirismo”, isto é, sem estar legalmente casado
  • falar palavrão em público (mesmo no rádio e na TV)
  • discorrer publicamente sobre a vida privada (especialmente em seus aspectos sexuais ou mais íntimos)
  • exibir nível considerável de nudez em público, fora de praias e piscinas

Note-se que nem sequer falei em homosexualidade, aborto e eutanásia.

Por outro lado, e o livro de Kupelian não cobre essa categoria, há uma série de comportamentos que não eram censurados tradicionalmente e passaram a ser vistos como falhas morais ou “pecados de primeira ordem” (ou, pelo menos, como algo “muito careta”, social e moralmente), como, por exemplo:

  • fumar (não só socialmente, mas até mesmo na privacidade dos próprios aposentos)
  • comer comida gostosa mas não muito sadia
  • ser sedentário (não gostar de andar, fazer exercícios, praticar ginástica, etc.)
  • beber pouca água
  • contar piada étnica (português, baiano, gaúcho)
  • usar linguagem politicamente incorreta
  • praticar ou defender a virgindade antes e a abstinência fora do casamento
  • desperdiçar água, não contribuir para a reciclagem do lixo, não dar sua parcela à preservação do ambiente
  • tratar animais domésticos como se fossem animais (que é como eles eram considerados antigamente)

Segundo o autor do livro (que, repito, não discute essa segunda categoria), essas mudanças por ele discutidas (todas da primeira categoria) representam uma verdadeira “inversão” de nossa moralidade pública, que ficou, por assim dizer, “de ponta cabeça”. O mais original da tese de Kupelian é que, na opinião dele, essa inversão não aconteceu por acaso, nem por simples processo de imitação natural de uns por outros. Tudo isso, afirma ele, é decorrência de processos de marketing cuidadosamente planejados e executados para acabar com o que era o grande bastião da civilização cristã, o Ocidente — para acabar com o que era o grande bastião da civilização ocidental, o Cristianismo. O que dá na mesma.

Antigamente ninguém negava que o marketing conseguia fazer com que comprássemos as maiores besteiras (coisas totalmente supérfluas e desnecessárias) e coisas até ridículas (roupa nova com aparência de velha, desbotada e rasgada). O que pouca gente parece perceber é que o marketing pode também ser dirigido para nos fazer acreditar que o que é errado é certo, e que o que é certo é errado, e nos levar a mudar os nossos valores e os nossos comportamentos no processo.

Korpelian se concentra no marketing do mal (“marketing of evil”) – isto é, nos processos marquetológicos que nos levam a aceitar como natural ou mesmo moralmente correto aquilo que, de fato, é moralmente errado.

Vários outros autores, principalmente defensores do liberalismo clássico, têm se dedicado a combater o processo inverso – a saber, o processo que “demoniza” valores e comportamentos que nada têm de moralmente errado (embora possam ser condenados por alguns que os consideram ofensivos), para, com isso, promover sua ideologia: aquilo que consideram “o bem”. 

Vale a pena pensar um pouco nisso… Volto logo com o segundo artigo.

Em Salto, 27 de Dezembro de 2015, revisado levemente ainda em Salto, em 8 de Abril de 2017

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