Escolher (ou Mesmo Não Escolher) uma Coisa Implica “Desescolher” Várias Outras . . .

[ Em 4 de Abril de 2013 Contardo Calligaris publicou um artigo na Folha de S. Paulo, com o título “As Vidas que Deixamos de Viver”, a propósito do livro Missing out: In Praise of the Unlived Life (Farrar, Straus and Giroux), de Adam Phillips. Transcrevo o artigo abaixo, porque o achei fascinante – e o achei fascinante, provavelmente, porque acho o assunto, em si, fascinante, tanto que comprei o livro em questão… ]

Nossa vida é construída em cima de escolhas e “desescolhas” que fazemos. Elas são de vários tipos:

  • Primeiro, há as escolhas as que consciente e explicitamente fazemos; por exemplo, decidimos nos casar com pessoa x;
  • Segunda, há as “desescolhas” que consciente e implicitamente fazemos, por serem incompatíveis com as escolhas do primeiro tipo que de fato fazemos; por exemplo, ao decidirmos nos casar com a pessoa x, “desescolhemos”não só ficar solteiros como, também, numa cultura monogâmica, nos casar com as demais pessoas a, b, c, etc.;
  • Terceiro, há as “não-escolhas” e “desescolhas” que fazemos, conscientemente ou não, quando de fato não fazemos uma escolha que era possível fazer; por exemplo, ao não escolher nos separar de x, apesar dos problemas no relacionamento, estamos, implicitamente e por implicação, “desescolhendo” mudar, interromper um relacionamento insatisfatório, dar um novo curso à nossa vida (possivelmente porque acreditamos que o status quo é preferível aos riscos que correremos ou os problemas que enfrentaremos, se fizermos a referida escolha.

Ou seja, a todo momento, ao escolher fazer uma coisa, “desescolhemos” fazer várias outras coisas — e mesmo ao não escolher fazer uma coisa, “desescolhemos” fazer várias outras coisas.

Dei, atrás, o exemplo da escolha de casar e da não-escolha de se separar. Mas há inúmeros outros exemplos.

Alguns deles:

  • Ao escolher morar em uma cidade qualquer, uma pessoa “desescolhe” morar em qualquer outra cidade ou morar na zona rural do globo;
  • Ao escolher adotar a fé cristã, uma pessoa “desescolhe” o ateísmo, o agnosticismo, e qualquer outra fé religiosa;
  • Ao escolher continuar a viver, em cada momento de sua vida, uma pessoa “desescolhe” milhares de vezes o suicídio.

E assim vai.

Em suma: ao escolher viver a nossa vida do jeito que de fato a vivemos, nós deixamos de viver (miss out) milhares, quiçá milhões, de outras vidas possíveis.

Pagamos um preço por esse fato — conscientemente ou não.

É frequente nos perguntarmos como teria sido a nossa vida se, em momento x, nós tivéssemos consciente e ativamente tomado uma decisão diferente, ou se nós tivéssemos simplesmente deixado de tomar qualquer decisão na ocasião, deixando que o status quo prevalecesse…

Certamente é possível que nos arrependamos de uma ou outra escolha que fizemos. É sempre possível tentar reverter a situação gerada fazendo uma outra escolha – talvez na direção do que deixamos de fazer anteriormente. Roberto Marinho havia namorado Lili na juventude; casou-se com outra; no fim da vida, viúvo, casou-se com a então dona Lili, também viúva.

Em qualquer momento de nossa vida, temos uma vida já vivida e um conjunto de planos e projetos para o futuro.

Na vida já vivida não há como mexer nem nada que se possa fazer para altera-la. Ela agora é passado e “imexível” — continua apenas como memória. No entanto, é possível “reconstruir” nossa memória para vivermos mais facilmente com fatos desagradáveis do passado, ou com fatos que, embora parecessem agradáveis quando ocorreram, vieram a ser avaliados de maneira diferente com o passar do tempo.

Em relação à vida ainda a viver temos razoável, talvez amplo, espaço de escolha: ela existe, de certo modo, desde, já como plano, como projeto, como esperança.

Assim, vivemos, constantemente, entre memórias e esperanças. O presente é o recheio razoavelmente fino de um sanduíche em que o passado e o futuro representam as duas fatias de pão…

As vidas que deixamos de viver (pelas nossas escolhas, não-escolhas e “desescolhas”) devem sua inexistência, como diz Calligaris, a uma variedade de causas:  “porque não foi possível, porque alguém nos impediu, porque ficamos com medo, porque escolhemos outro caminho, porque a sorte não quis”. A causa talvez não importe tanto quanto o fato de que deixamos de vivê-las.

A literatura, o cinema, a televisão são notórios mercadores de sonho, que diariamente nos mostram vidas que poderíamos ter vivido, apenas se… e entra uma explicação.

A felicidade talvez consista em viver bem com as escolhas que de fato fizemos, deixando lá atrás as coisas que ficaram para trás, e olhando à frente, para a realização dos sonhos que ainda nos restam. . . (Fil 3:13).

o O o

A crônica de Contardo Calligaris:

Folha de S. Paulo, 04/04/2013 – 03h00

As vidas que deixamos de viver

Contardo Calligaris

“Quase sempre, quando encontramos alguém que nos encanta, começamos por lhe contar nossa vida e expor nossos projetos –pois é possível que, para um casal, compartilhar planos seja mais importante do que cada um conhecer e entender o passado do outro.

Em suma, a gente se apresenta ao outro como numa entrevista de emprego, dizendo o que fizemos e o que esperamos. Afinal, somos uma mistura da vida vivida com o futuro sonhado, não é?

Acabo de ler o último livro de Adam Phillips, psicanalista inglês que é um dos autores que mais me estimulam a pensar: “Missing out: In Praise of the Unlived Life”, (Farrar, Straus and Giroux) (perder: elogio da vida não vivida –“missing out” é perder no sentido em que você chega atrasado na festa e pergunta: perdi alguma coisa?).

Justamente, à história passada e aos sonhos Phillips acrescenta mais um ingrediente que nos define: o conjunto das vidas que deixamos de viver –porque não foi possível, porque alguém nos impediu, porque ficamos com medo, porque escolhemos outro caminho, porque a sorte não quis.

Algumas vidas não vividas são alternativas descartadas pela inércia da nossa história ou porque o desejo da gente é dividido, e escolher implica perder o que não escolhemos.

Outras são acasos que não aconteceram (é possível passar pela vida sem encontrar ninguém ou encontrando muitos, mas todos na hora errada).

Também, mais dolorosamente, as vidas não vividas são caminhos pelos quais não ousamos nos enveredar (na inscrição para o vestibular, na decisão de voltar de um lugar onde teríamos começado outra vida, nos conformismos de cada dia).

Essas vidas não vividas podem nos enriquecer ou nos empobrecer. Elas nos enriquecem quando integram nossa história como tramas alternativas de um romance, incluídas no rodapé da edição crítica.

Melhor ainda, como tramas alternativas às quais o autor renunciou, mas que ele se esqueceu de apagar inteiramente: o herói não vai mais para África no capítulo dois, mas eis que, no capítulo sete, aparece um africano que ele conheceu antes, mas que não se entende de onde vem, a não ser que a gente leia aquela parte do dois que foi abandonada.

Aqui, um conselho: é útil frequentar as vidas não vividas de nossos parceiros (para evitar surpresas desnecessárias, como a chegada de personagens que não fazem parte nem do passado nem dos sonhos do outro, mas das vidas às quais ele achava ter renunciado).

Agora, as vidas não vividas podem sobretudo nos empobrecer, levando-nos a viver num eterno lamento por algo que não nos foi dado, que perdemos ou do qual desistimos. Esse, aliás, é o futuro que estamos preparando para nossas crianças.

Uma das razões pelas quais as vidas não vividas condenarão as crianças de hoje à sensação de desperdício é a popularidade do mito do potencial. Alguém não está se tornando tudo o que esperávamos? Que pena, com o potencial que ele tinha…

De onde vem a ideia de que nossas crianças seriam dotadas de disposições milagrosas e que o maior risco seria o de elas desperdiçarem o que já é seu patrimônio?

O potencial das crianças modernas tem duas propriedades: ele é genérico (ou seja, não é fundado em nenhuma observação específica, é uma espécie de a priori: criança tem grande potencial, em tudo) e ele deve dar seus frutos espontaneamente, sem esforço algum da parte da criança.

Nossos rebentos são dotadíssimos para esporte, desenho, criação, música, ciência, estudo, línguas estrangeiras etc. E, se os resultados escolares forem péssimos, as crianças nunca são preguiçosas, elas só estão desperdiçando seu “incrível potencial”. Há uma cumplicidade de todos ao redor dessa ideia.

Os pais querem que as crianças sejam tudo o que eles não conseguiram ser na vida. Pior, eles querem que as crianças cumpram essa missão sem esforços, por milagre (o milagre do “potencial”).

Os professores acham no potencial uma maneira maravilhosa de assinalar que fulano é medíocre sem atrapalhar o sonho dos pais da criança, os quais podem seguir pensando que seu filho leva notas infernais, mas vale a pena insistir (e pagar a escola mais cara) porque ele tem um potencial extraordinário.

Quanto aos filhos, acreditar em seu próprio “potencial” é uma maneira barata para se sentir especial, apesar de resultados pífios. Problema: na hora, inevitável, do fracasso, quem aposta no seu potencial conhece a sensação especialmente dolorosa de ter traído a si mesmo (ou seja, ao seu “potencial”).”

Em Salto, na madrugada de 18 de Junho de 2016.

 

 

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