Mentalismo, Empirismo, a Realidade Propriamente Dita, e o Espelho aqui de Casa

Uma das coisas mais esquisitas da Filosofia, para quem começa a estuda-la, é descobrir que há muitos filósofos, em geral chamados de Mentalistas ou Idealistas, que têm dificuldade para acreditar, como o faz o chamado Senso Comum, que a realidade é composta, primariamente, de entidades físicas, químicas e biológicas que ocupam lugar no espaço e podem ser vistas, tocadas, medidas, pesadas, cheiradas, ouvidas, lambidas, etc. – isto é, entidades (a) que podem ser percebidas com razoável fidelidade pelos nossos cinco órgãos dos sentidos e (b) que continuam em existência mesmo quando nós deixamos de percebe-las (quando estamos dormindo, por exemplo, ou quando morremos – que é algo parecido com um sono eterno).

Esses filósofos usam uma sofisticada cadeia de argumentos para tentar provar (a) que o objeto de nossa percepção não são objetos materiais externos a nós, mas, sim, entidades – que uns chamam de “dados sensoriais” (sense data, em Inglês), outros, de sensações, e ainda outros, de ideias – que existem em nossa própria mente, não na realidade externa a nós, e (b) que é muito difícil, quiçá impossível, inferir, a partir dessas entidades mentais a existência de um mundo exterior que possa ser caracterizado como a realidade, propriamente dita, num sentido “duro” do termo “realidade”.

Por defenderem a tese (que parece absurda ao Senso Comum) de que nós só temos acesso, através de nossos órgãos dos sentidos, a entidades que estão dentro de nossa própria mente (entidades intramentais, portanto), esses filósofos acabam por negar, ou por considerar extremamente problemática, a tese, que parece tão óbvia a não-filósofos, de que nós, seres humanos, somos entidades materiais, ou seja, físicas-químicas-biológicas (em última instância é isso que nosso corpo é), com órgãos de percepção, e, com um componente misterioso chamado de “mente”, que não é material, e que, como tal, somos  capazes de perceber um mundo material que existe fora de nós e independentemente de nossa percepção dele.

Ilustrando: o meu sítio, com suas casas, suas plantas, suas vaquinhas, um ou outro cavalo, seus porquinhos (e porcões), seus galináceos, seus passarinhos (siriemas, especialmente),etc. não deixa de existir quando eu pego meu carro e vou para São Paulo, deixando de perceber o mundinho que agora eu facilmente percebo – bastando abrir os olhos e olhar.

Por essa e por outras o Senso Comum acha que filósofos são seres que vivem fora da realidade (propriamente dita) e chegam muito perto de seres ensimesmados, por assim dizer, dentro de sua própria mente, como se nada mais existisse – só eles, ou, mais precisamente, só suas mentes.

Um problema curioso surge aqui: se isso é assim, é possível vir a crer que “outras mentes”, semelhantes à minha, existem, ou só posso concluir que eu existo, porque eu sei que eu penso (duvido, etc.)?

Filósofos, pelo menos dessa estirpe, estão muito próximos daquilo que se convencionou chamar de “solipsismo”: a tese de que só posso ter certeza de que eu próprio existo, nada mais. E Descartes, um filósofo mentalista / idealista dos mais importantes, ainda fez a ressalva de que o “eu” que eu posso ter certeza que existe não é um “eu material”, uma coisa estendida no espaço (res extensa), mas, sim, um eu puramente mental (isto é, apenas a minha mente) – algo que ele chamou de “coisa pensante” (res cogitans), lembrando-nos de que um pensamento não se estende no espaço. Logo, a realidade (vale dizer, o mundo) não passa de um conjunto de ideias dentro da minha mente – sem que eu sequer possa afirmar que outras mentes existam, cada qual delas com “sua” realidade (isto é, seu conjunto de dados sensoriais, sensações, ideias, etc.). Até mesmo o relativismo se torna problemático aqui.

Mas o mais interessante, porém, está por vir…

Quando a gente estuda a História da Filosofia Moderna pela primeira vez, os nossos mestres nos ensinam que, em contraposição aos Mentalistas / Idealistas, há os Empiristas. A essas alturas, a gente fica finalmente aliviado por existirem pelo menos alguns filósofos com bom senso…

Mas os chamados “Empiristas” (especialmente os Britânicos, pessoas como John Locke, George Berkeley e David Hume) eram, acima de tudo, anti-inatistas. Explico o que isso quer dizer. Descartes, por exemplo, além de mentalista / idealista era inatista no sentido que acreditava que as ideias em nossa mente são produzidas, basicamente, pela própria mente (que não tem acesso ao mundo exterior a ela). Nascemos, portanto, com todas as ideias que vamos oportunamente ter, ainda que a mente tenha que trabalhar duro, em cima de algumas ideias, para delas inferir (vale dizer, deduzir) outras. Os empiristas britânicos, de certo modo influenciados (em parte) por Aristóteles, acreditavam que nada existe na mente do ser humano ao nascer a não ser algo parecido como uma folha de papel em branco (uma tabula rasa), e que qualquer coisa que venha a ser “impressa” nessa folha tem, forçosamente, de chegar lá via (pelo menos) um dos órgãos dos sentidos. O dito famoso de Aristóteles foi: nihil in intellectu est quod prius non fuerit in sensu – não há nada no intelecto que não tenha antes estado nos sentidos. Ou seja, sendo uma tabula rasa, a mente, sem a ajuda dos órgãos que nos permitem ter experiências sensoriais, permanece vazia: seu interior (por assim dizer) seria um vácuo total. São os órgãos dos sentidos que, através de nossa experiência sensorial, alimentam a mente com dados sensoriais, introduzem nela materiais com que pensar.

Mas aqui vem o problema. Para a maioria dos empiristas, aquilo a que a mente tem acesso são “sense data”, sensações que acontecem quando temos uma experiência sensorial, mas o que fica na mente, passada a experiência sensorial, que é fugaz, também é apenas uma ideia, um “fenômeno”, um “fantasma”, uma cópia ou representação frágil da sensação, não a própria sensação empírica (que, repito, é fugaz, dura apenas um instante) – muito menos o “nômeno”, que seria a coisa em si mesma.

Em resumo: as teses empiristas modernas acabam nos deixando na mesma vala comum do mentalismo / idealismo: não podemos ter acesso às coisas como elas são, à realidade propriamente dita. Nossa mente só tem acesso momentâneo a experiências sensoriais e, depois, a representações dessas experiências, que chamamos de ideias, que combinadas de inúmeras formas constituem todo o mobiliário de nossa mente. A única diferença básica entre mentalistas / idealistas e empiristas está em que estes acreditam (como um postulado básico que não incapazes de justificar) que todas essas ideias são oriundas da experiência, não havendo nenhuma delas que seja inata (que tenha nascido conosco, por assim dizer).

O único jeito de sair desse “conundrum” (como dizem os de fala inglesa), ou desse quebra-cabeças, é romper com o seu pressuposto básico tanto dos mentalistas / idealistas como dos empiristas: de que a mente só tem acesso, através da percepção, a dados sensoriais, sensações, etc.. Tendo rompido, substituiríamos esse pressuposto por outro, que era adotado pelos clássicos (mormente Aristóteles): o de que aquilo a que a mente tem acesso pela (na) percepção é a própria realidade material, propriamente dita, não sensações ou dados sensoriais, realidade essa que ela “conceptualiza” (transforma em conceitos), porque é muito mais fácil e eficiente manipular conceitos que se aplicam a várias entidades, do que as sensações em si, que são singulares e particulares, e não “gerais”, como os conceitos (chamados de “general ideas” pelos filósofos empiristas dos Séculos 17 e 18.

Mas vou interromper essa discussão para introduzir a história do espelho aqui de casa. Muitos podem ter lido este artigo apenas por causa da referência ao espelho.

Compramos um dia desses, no Extra do Shopping Plaza de Itu, um lindo espelho, de mais ou menos 1,80m por 50cm. É um espelho magnífico, não tanto pela sua moldura, mas pelo fato de que, em relação a outros espelhos que temos, ele aparentemente “estica” e “afina” a gente. Em outras palavras: quando me vejo naquele espelho, vejo-me como bem mais alto e magro do que a imagem que outros espelhos dão de mim.

Como é de esperar, o espelho se tornou um sucesso imediato aqui em caso. Todo mundo só quer se arrumar diante dele.

Mas daí surgiu a grande dúvida existencial na mente de uma filosofazinha em potencial: “A imagem da gente fica bacana no espelho, mas a gente sabe que não é assim…” Well, well, well… Sabe como, cara pálida? A gente não tem como observar o próprio corpo, em sua inteireza, de fora da gente, como se fosse. A gente só é capaz de observar o próprio corpo, em sua inteireza, em reflexo, num espelho, num vidro ou em outro material qualquer que reflete imagens. O máximo que a gente pode dizer é: “A imagem da gente fica bacana neste espelho, mas a gente sabe que em outros espelhos a imagem é diferente”. Tudo bem. Mas através de que critérios podemos concluir que a imagem dos outros espelhos é “verdadeira” e a imagem deste espelho é “falsa”? Seria um critério quantitativo? Em quase todos os outros espelhos a minha imagem me mostra mais baixinho e mais gordinho do que me mostra a minha imagem neste espelho. Logo, este aqui é que deve estar errado. Mas e se eu for ao Extra e comprar todo o estoque de espelhos como este que eu comprei recentemente? Posso comparar a imagem dos, digamos, 100 espelhos que eu comprei com a dos outros espelhos que eu de vez em quando encontro pela casa ou por aí? Na verdade, na maioria dos casos a imagem dos outros espelhos não passa, hoje, de uma memória de uma imagem vista no passado – e neste caso eu teria 100 imagens reais (não meras memórias de imagens) para mostrar que eu sou mais alto e mais magro do que imaginava antes (com base em meras memórias de imagens visualizadas no passado)…

Como decidir? Segundo os próceres maiores da Filosofia Moderna, não há como. Na base de uma filosofia que se pretende moderna e racionalista há um irracionalismo crasso: eu prefiro tomar como reflexo da minha “real realidade” a imagem deste(s) (100) espelho(s) e não a dos outros… Punto e basta!

Pode parecer que a questão levantada envolve uma mera brincadeira. Mas ela toca em um ponto real. Se eu só me conheço, em minha inteireza corporal, através de imagens de mim refletidas em alguma superfície como um espelho, e dois espelhos dão imagens diferentes de mim, como eu decido? De forma totalmente arbitrária, escolhendo a imagem que me agrada mais?

Há algum critério objetivo que me faça fugir do subjetivismo aqui?

Eu poderia chamar uma outra pessoa, que (sem dúvida) me vê, em minha inteireza corporal imediata, sem a mediação de um espelho (ou equivalente), pedir para que ela olhe para mim diretamente e, depois, olhe para as duas imagens de mim refletidas nos dois espelhos, e daí perguntar a ela qual das duas imagens refletidas se parece mais com o “eu real”, não refletido…  A resposta dela seria mais objetiva do que a minha decisão de optar por uma das imagens, a que mais me agrada? Possivelmente, sim… Mas quem me garante que essa pessoa não tem um defeito no seu mecanismo perceptivo? Digamos que ela enxergue muito mal, de forma distorcida, que achata e alarga os objetos que ela enxerga, quando os contempla, seja diretamente, seja através de reflexo?

 Durma-se com um barulho desses… Eu, por mim, já resolvi o problema. Mas confesso que não foi de uma forma objetiva…

Em Salto, 6 de Janeiro de 2016.

É o Mundo em Branco e Preto ou ele vem em 50 Tons de Cinza?

C. P. Snow, autor de um famoso livrinho chamado As Duas Culturas, publicado inicialmente em 1956, disse, quase no início do livro: “Tentativas de dividir qualquer coisa em dois grupos devem ser consideradas com a maior suspeita”. Isso, dito em um livro que se chama As Duas Culturas, é digno de nota.

Mas a tese parece plausível, inicialmente. Dividir os brasileiros, por exemplo, entre “nós” e “eles” — independentemente de quem somos nós e quem são eles — parece deixar de fora gente que não quer ser nem nós nem eles, e que talvez seja contra nós e eles… Dividir as pessoas que têm opiniões políticas entre “esquerda” e “direita” também parece fazer algo parecido: deixa de fora gente que não se considera nem de esquerda nem de direita, por se ver como de “centro”… O Novo Testamento afirma que quem não é por nós, é contra nós — deixando de fora os indiferentes, que não são nem por nós nem contra nós, por achar que há outras alternativas…

Por outro lado, Ayn Rand, autora que eu sempre admirei, era uma dessas pessoas que enxergava o mundo em branco e preto, sem tons de cinza no meio. Ou você é do bem ou é do mal, ou é radicalmente a favor da liberdade ou é um autoritário (e totalitário) — confesso ou enrustido. Para ela, ou você é do primeiro sexo (que é o masculino — ela era machista) ou do segundo (o sexo ao qual Simone de Beauvoir dedica mais atenção, por pertencer a ele). Para ela, nada de bissexo, ou de terceiro sexo, ou de assexo, ou de transexo. Nada de 50 tons de cinza. Muito menos os mais de dezesseis milhões de tonalidades entre banco puro e preto puro que o pessoal de informática entende muito bem (por que é 2 elevado a 16). Ou você é casado ou não é — nada de “mais ou menos”, ou de “tico-tico no fubá”, como dizia o Sílvio Santos.

Para Ayn Rand (voltando a ela e deixando a de Beauvoir quietinha no seu canto), se alguém lhe faz uma pergunta, como, por exemplo, você é a favor da pena de morte, a resposta é ou sim ou não — não se admitem respostas que comecem com “Bem…”

Você concorda com a tese de que a tentativa de dividir qualquer coisa em dois grupos é uma atividade sempre suspeita? Sim ou Não? Não vale dizer “Bem…”

Confesso que, talvez por influência de Ayn Rand, mas acho que principalmente pela influência de Aristóteles (que influenciou enormemente Ayn Rand), tenho uma tendência a ser binário.

Em sua classificação dos seres (qualquer coisa que existe é um ser), Aristóteles foi totalmente binário. Os seres se dividem em animados e inanimados; os animados se dividem em dois; os inanimados, idem.

A teologia calvinista também é binária… As pessoas se dividem em eleitas e não-eleitas… elas vão para o céu ou vão para o inferno… nada de limbo ou purgatório, nem mesmo com estágio intermediário temporário.

Na lógica e na epistemologia, qualquer enunciado é verdadeiro ou falso — tertium non datur… Na ética e na filosofia política, qualquer conduta ou fora de organizar a vida em sociedade é boa / certa ou má / errada — tertium non datur… Mas quando chego à estética, reluto em dizer que qualquer pessoa é bonita ou feia. Sempre há as(os) bonitinhas(os), que não são nem uma coisa, nem outra, mas insistem em ignorar a a binaridade da vida. No Facebook essa binaridade é ignorada: qualquer foto de pessoa postada é sempre “linda!!!” (assim, com três pontos de exclamação).

Acho que devemos dedicar um pouco de reflexão a essa questão: na vida, usando as cores em sentido metafórico, é tudo branco ou preto, ou existem tons de cinza? Se você não se sente bem em um mundo binário, qual é a alternativa: um mundo plural em que tudo se divide em um monte de categorias? Em que há homens, mulheres, assexuados, bissexuais, multissexuais, plurissexuais, transsexuais?

Sexo só há dois, não é verdade? Masculino e Feminino, Macho e Fêmea (no caso dos animais), Homem e Mulher (no caso da raça humana). Hermafroditas existem, mas são admitidamente uma anomalia. Ninguém escolhe ser hermafrodita: ou se nasce assim ou não se nasce assim… Quem sabe, no futuro, com o progresso da ciência (bendita ciência, não?), será possível para um homem ou uma mulher acrescentar os órgãos sexuais do outro, tornando-se hermafrodita por escolha. Mas até lá…

Até nossa amiga Simone de Beauvoir deu ao livro dela o título de Le Deuxième Sexe, n’est-ce pas? Ela não o intitulou de “Os Outros Sexos”, ou “Nossas Alternativas Sexuais”. Quando ela procurava meninas para atender aos desejos de seu companheiro Sartre, eram claramente meninas que ela buscava — não meninos… Às vezes os rolos eram do tipo ménage, mas, por mais avançada que fosse, ela não se sentia bem vendo seu companheiro transando com suas alunas (suas dela e suas dele)…

Acho que o pessoal que inventou a questão do gênero aplicável a pessoas teve de recorrer à categoria “gênero” porque ficava meio complicado dizer que havia vários sexos, não é? A gente pode escolher de que jeito vai viver (gênero), mas não escolhe o próprio sexo. Sexo é biologia, sexo é destino — mesmo que hoje seja possível amputar um pênis, ou implantar uma prótese peniana, ou construir uma vagina, ou, então, costurar a que se tem. . . Mas nada disso elimina o fato de que, durante a gravidez, quando se faz um ultrassom, o que se procura é evidência de um pintinho ou de uma xoxotinha…

É isso… Ficar sozinho no sítio durante um fim de semana prolongado, sem muito o que fazer porque desde ontem à noite não há eletricidade, dá nisso.

Em Salto, 1 de Novembro de 2015. Dia de Todos os Santos. O santo do meu dia é a Independência do Brasil. Nasci em 7 de Setembro…

Você só tem duas opções: Curta, ou não… 🙂

Por outro lado…

Por outro lado, “e aqueles vistos dançando foram considerados insanos pelos que não podiam ouvir a música” (Frase atribuída a Friedrich Nietzsche; citada pelo Rev. Reginaldo von Zuben em um sermão na Catedral Evangélica de São Paulo).

[NOTA: Verificando na Internet, descobri que a frase é retirada de Assim Falava Zaratustra.]

Em São Paulo, 9 de Agosto de 2014.

Em Louvor aos Increntes

A língua inglesa muitas vezes tem mais recursos do que a nossa.

Em Inglês é possível designar o ato de crer (em alguma coisa) com o verbo “believe (that)”. É possível designar o ato de descrer (em alguma coisa) com o verbo “disbelieve” (that). Descrer que x (onde x é uma proposição ou um enunciado qualquer) é equivalente a crer que x é falso, ou a crer que não-x é verdadeiro.

Mas o que acontece se, em relação a x, eu nem creio nem descreio – mas opto por suspender meu julgamento, por não ter opinião a respeito, por esperar que fique mais claro se há evidência confiável em relação a x, e se ela é preponderantemente favorável ou contrária?

Em Português não é fácil expressar esse ato – ou melhor, esse estado. (Interessante: “crer” e “descrer” parecem designar atos; “não crer”, ou “increr”, parece designar um estado…). Em Inglês, embora incomum, é possível dizer “unbelieve (that)” para designar esse estado. “Unbelieve” parece designar um estado de coisas em que a pessoa nem crê, nem descrê, nem crê que x é verdadeiro, nem crê que x é falso. “Unbelief” difere, portanto, não só de “belief” mas também de “disbelief”. “Não crer” (“increr”) não é a mesma coisa que “descrer” (nem, evidentemente, que “crer”).

Existe vida em outros planetas? Eu increio. A resposta “Eu increio” significaria que eu nem creio nem descreio – eu simplesmente não sei, não tenho opinião firmada a respeito disso, acho que a evidência disponível, no momento, não me justifica optar por uma ou por outra resposta. Nesse caso, suspendo julgamento, deixo de julgar, não tomo partido na questão.

O verbo “increr” é, admitidamente, esquisito em Português – mas a gente fala em “incredulidade”, em estar “incrédulo”. . . Só que o termo “incredulidade” é usado, em geral, com um sentido muito próximo ao que eu daria ao termo “descredulidade”. . .

Diante disso, proponho que cunhemos o termo “increr” (que x), com seus derivados, para designar o estado de alguém que nem crê nem descrê que x – isto é, de alguém que ainda não tem posição firmada sobre se x é verdadeiro ou falso. “Increr” é basicamente equivalente a “ser agnóstico”, a “agnosticar”, diante da questão,

Sempre me causou surpresa o número de crentes no mundo – isto é, o número de pessoas que crê em coisas para as quais não há evidência, ou em relação às quais, se há evidências, as evidências favoráveis e contrárias basicamente se contrabalançam, em relação às quais pareceria mais recomendável suspender o juízo, ser agnóstico, ou, como diria meu “santo padroeiro”, David Hume, adotar um “ceticismo moderado”.

Hume era uma figura admirável. Ele criticava os que eram crentes fáceis, que acreditavam antes que a evidência disponível se mostrasse suficientemente convincente e persuasiva. Mas ele criticava também os céticos radicais, que não acreditavam em nada, que desprezavam os fiapos de evidência que existiam a favor das coisas em que descriam… A posição que ele defendia era a de um ceticismo moderado (“mitigado” era o termo que ele usava). A gente, segundo ele, não deve ser apressado demais – nem para crer, nem para descrer. A gente deve dar tempo ao tempo, esperar para ver como as coisas ficam, verificar cuidadosamente se há evidência, favorável ou contrária, analisar essa evidência, avalia-la para aferir se uma não anula a outra. . .

O ceticismo moderado de Hume é a atitude ponderada dos sábios que não têm muitas certezas, não a atitude apressada dos néscios, sempre prontos a crer ou descrer no ato, sem parar para pensar, para ponderar, para decidir, entre outras coisas, se vale a pena se comprometer com um lado ou com o outro.

Essa vacina humeana pegou em mim muito cedo – e parece ter validade para a vida inteira.

Em São Paulo, 9 de Agosto de 2014